segunda-feira, 29 de outubro de 2007

A Poesia e os Corações Perdidos

"Ele jamais amara alguém. Mas, incompreensivelmente, havia nele um coração que estava sempre na maré alta, e que fustigava seu peito com as ondas espumantes de suas paixões.
Descobriu, por acaso, entre uma janela noturna, o solilóquio de uma televisão e um copo solitário, que as ondas do coração amansavam-se, quando se espalhavam nas brancas praias de papel sulfite.
Para aquietar o espírito ensandecido, escreveu todos os versos que lhe vieram à mente, como calhaus de um naufrágio. E, diante daquelas palavras absurdas, sem sentido como as tragédias, sem endereço como o acaso, experimentou a sensação fugaz da salvação.
Assim, vinha até a sua praia desafiadora todas as noites, admirar suas ondas dialéticas quebrarem-se contra rochedos de dúvidas, arrastar os estranhos moluscos de seus segredos, revelar em redes o dorso luzidio de cardumes de sonhos. O poeta assistia, atônito, à noite de grafite revelar-se que tudo era espuma e um eterno ir-e-vir.
Em algumas semanas, tinha a sensação de um degredado, que já fora abandonado em todas as praias do mundo. E o mesmo navio que o trazia até seu lugar de desterro levava consigo sua esperança de salvação definitiva, como se em suas velas estivesse escrita a sentença:
- Em mim está o objeto de tua paixão. O que procuras ávido é aquilo mesmo que te condena à incessante busca.
Disseram-lhe, certa vez, que as razões do coração fazem tanto sentido quanto um discurso de um louco chinês a um canário belga. E a razão não só desconhece, como também não faz nenhuma questão de ocupar-se do assunto.
Assim, restava-lhe saber, então, por que escrever nas areias da praia tornara-se para ele tão imprescindível, se as ondas de sua confusão interior misturavam suas palavras com seus dedos líquidos implacáveis.
Certo dia, indo de ônibus para o trabalho, esqueceu sobre o banco o seu pacote de versos.
Alguém o encontrou, sem desconfiar que um homem naquele instante caminhava atormentado por praias brancas incongruentes, procurando suas palavras perdidas.
Leu os poemas com paixão. E isso quer dizer que os leu de pé sobre um rochedo, onde se quebram as ondas do coração. E por conta desse tormento, esqueceu também o volume de versos no banco de um ônibus.
Outra pessoa encontrou o livro e depois outra, outra, outra.
Numa noite, entre a janela aberta para um mundo solitário, as pálpebras cerradas de uma tevê e um copo vazio, nas praias de um sulfite branco, o poeta deparou-se com as esculturas de areia de todos os habitantes do mundo. "

[em Fábulas do amor distante, de Marco Túlio Costa]

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Ouvir histórias, ler o mundo

"O mundo é um livro sem texto, criado a partir da palavra. Dizendo faça-se luz, a água, a terra, o caos se curou. Livro sem texto onde me vejo elaborando orações, apaziguando as imensas emoções percebidas nesse mar de linhas e horizontes de eternas leituras. Desde o início em que me lembro, leio ininterruptamente suas páginas, recorrendo a todos os meus sentidos, acrescentando ainda o fantasiado, na tentativa de me acalentar frente a tão imenso mistério. E sobre esse remoto livro sem texto -invenção original primeira- busco atribuir significado a tudo que ultrapassa o meu pouco poder. Freqüentemente, incapaz de decifrar os enigmas, recorro ao imaginário, resgatando elementos para me proteger diante de tamanha intensidade. E só a palavra me inscreve.
...Procurando adivinhar esse livro sem texto, eu escutava o conto de cada um para facilitar minha leitura. Cada história me trazia novos entendimentos e outras lembranças. Elas clareavam meus jovens pressupostos, me revelavam o sentido que cada um imprimia a essa viagem.
E muitos - avós, padrinhos, vizinhos- me ofereciam histórias. Em suas narrativas afetuosas eu descobria o contraditório, o medo, o desejo, o ódio, a insegurança, sentimentos comuns a todos nós, passageiros. Revelou-se para mim que contar histórias era, também para eles, colocar as dúvidas, temporariamente, em seus lugares. Isso nos aproximava. O contador se fazia ouvinte de si mesmo. E todos, com diferentes lápis e vários tons, legendavam as páginas do livro. Receoso quanto ao futuro, incerto sobre o antes, eu ia atravessando os fantasmas na medida em que a linguagem tornava inteligível a lição.
...
As palavras me roubavam o sono e construíam os sonhos, me aproximavam das perdas ou inauguravam os meus lutos. E meu cuidado para com elas, era tanto, que o silêncio passou a ser o lugar onde todas dormiam. Para acordá-las era preciso muita cautela.
...
As histórias me aproximaram das palavras escritas. Saber ler passou a ser ganhar ou abrir portas, encontrar novos alicerces, desequilibrar o sabido, desconfiar da permanência. Ler era o que de melhor eu podia fazer por mim. Ler, não para saber, mas pelo prazer de receber notícias de outras inquietações.
Se visito o passado, não sei se as dúvidas das crianças de hoje são outras. Às vezes, sou levado a perceber que o mistério do nascimento e da morte, com suas inquietações intermediárias persistem. Vejo então, como indispensável, tomar uma criança no colo e dizer da fragilidade da viagem, lançando mão do mais eficaz dos métodos: deixar a fantasia ler o mundo e legendá-lo, então, afetivamente.

(Bartolomeu Campos Queirós, Ouvir histórias, ler o mundo)