quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Terra dos Homens

“Levantei-me. Pela uma da madrugada corri os carros, de ponta a ponta. Os vagões- dormitório estavam vazios. Os vagões de primeira classe estavam vazios. Mas os vagões de terceira classe estavam cheios de centenas de operários poloneses despedidos da França, que voltavam para a sua Polônia.
Caminhei pelo centro do carro, levantando as pernas para não tocar nos corpos adormecidos. Parei para olhar. De pé, sob a lâmpada do carro, contemplei naquele vagão sem divisões, que parecia um quarto gigantesco, que cheirava à caserna e à delegacia, toda uma população confusa, sacudida pelos movimentos do trem. Toda uma população mergulhada em sonhos tristes, que regressava para a sua miséria.
(...) assim, eles me pareciam ter perdido um pouco a qualidade humana, sacudidos de um extremo a outro da Europa pelas necessidades econômicas (...)
Uma criança chupava o seio de sua mãe que, de tão cansada, parecia dormir. A vida, transmitia-se assim, no absurdo e na desordem daquela viagem. Olhei para o pai. Um crânio pesado e nu como uma pedra. (...) Aquele homem parecia um monte de barro.
E eu pensei: o problema não reside nessa miséria, nem nessa sujeira, nem nessa fealdade. O mistério está nisso: eles terem se tornado esses montes de barro. Por que terrível molde terão passado, por que estranha máquina de entortar homens? Um animal, ao envelhecer, conserva a sua graça. Por que a bela argila humana se estraga assim?
(...) Sento-me diante de um outro casal. Entre o homem e a mulher, a criança se havia alojado, e dormia. Voltou-se porém, no sono. E seu rosto me apareceu sob a luz da lâmpada.
Ah, que lindo rosto!
Havia nascido daquele casal uma espécie de fruto dourado. Daqueles pesados animais – pensei – havia nascido um prodígio de graça e encanto.
Inclinei-me sobre a fronte lisa, a pequena boca ingênua. E disse comigo mesmo: eis a face de um músico! Eis Mozart, criança! Eis uma bela promessa de vida!
Não são diferentes dessa criança, os belos príncipes das lendas!
Se protegido, educado, cultivado, que não seria ela? Quando, por mutação, nasce nos jardins uma nova rosa, os jardineiros se alvoroçam: a rosa é isolada, é cultivada, é favorecida. Para que possa se desenvolver e desabrochar.
Mas, não há jardineiros para os homens .... ”.

[Saint Exupéry]
> seleção feita por André Rivola, para a apresentação do grupo Conto a Conto, em Cotaçao 2.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

O Homem que Amava Caixas

Era uma vez um homem
O homem tinha um filho
O filho amava o homem
e o homem amava caixas.

Caixas grandes
caixas redondas
caixas pequenas
caixas altas
todos os tipos de caixas!

O homem tinha dificuldade em dizer ao filho que o amava;
então, com suas caixas, ele começou a construir coisas para seu filho.
Ele era perito em fazer castelos
e seus aviões sempre voavam...
a não ser, claro, que chovesse.

As caixas apareciam de repente, quando os amigos chegavam, e, nessas caixas, eles brincavam...
e brincavam...
e brincavam.

A maioria das pessoas achava que o homem era muito estranho.
Os velhos apontavam para ele.
As velhas olhavam zangadas para ele.
Seus vizinhos riam dele pelas costas.

Mas nada disso preocupava o homem,
porque ele sabia que tinham encontrado uma maneira especial de compartilharem...
o amor de um pelo outro.

[livro de Stephen Michael King, da Brinquebook]

Meninos e Meninas, eu li:

SMK é desse autores que a gente pode ler toda a obra sem receio de errar. Um ilustrador delicado e autor atento. Seus textos e desenhos são pura poesia. Esse é um poema. Para adultos e crianças de todas as idades, fala da qualidade das relações, hoje no pouco tempo que nos sobra entre tantos brinquedos digitais, inclusive esse onde nos conectamos. Há conexão mas afeto é raro. No livro o afeto se dá na ação, no fazer junto. Não esta em palavras, não há dialogo formal entre os personagens. Mas dialogam através de caixas... daquele objeto que seria o que encaixota, que esconde, que protege, que embala, que envia, que guarda... crianças gostam de caixas, fato. Como Calvin que prefere as caixas ao conteúdo que guardam. Gente grande que guarda a criança também gostam de caixas.. conheço várias. Talvez porque contém todas as possibilidades - podem ser uma casa, um carrinho, um berço, um transmutador celular... Caixas são lúdicas. São brinquedos em essência - não prontos, mas a serem criados, realizados, construídos. e podem ser tudo, tudo que a imaginação quiser. O dia que a industria de brinquedos perceber isso e os adultos também, talvez seja a falência da primeira e o dialogo geral do segundo.  [por Lux]

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Histórias para o rei

Nunca podia imaginar que fosse tão agradável a função de contar histórias, para a qual fui nomeado por decreto do Rei. A nomeação colheu-me de surpresa, pois jamais exercitara dotes de imaginação, e até me exprimo com certa dificuldade verbal. Mas bastou que o Rei confiasse em mim para que as histórias me jorrassem da boca à maneira de água corrente. Nem carecia inventá-las. Inventavam-se a si mesmas.
Este prazer durou seis meses. Um dia, a Rainha foi falar ao Rei que eu estava exagerando. Contava tantas histórias que não havia tempo para apreciá-las, e mesmo para ouvi-las. O Rei, que julgava minha facúndia uma qualidade, passou a considerá-la defeito, e ordenou que eu só contasse meia história por dia, e descansasse aos domingos. Fiquei triste, pois não sabia inventar meia história. Minha insuficiência desagradou, e fui substituído por um mudo, que narra por meio de sinais, e arranca os maiores aplausos.

[de Carlos Drummond de Andrade, em Contos Plausíveis]